Apoio ProAC Expresso Direto 38/2021 – Fomento Direto a Projetos Culturais – Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo; Pinacoteca Municipal de São Bernardo do Campo Curadoria Allan Yzumizawa, Horrana de Kassia Santoz e Jurandy Valença PROJETO GRÁFICO: LaCasita Atelie IDENTIDADE VISUAL: Gutum apoio artistas expositores Aline Moreno, Elton Hipolito, Gina Dinucci, Gustavo Prata, Jeff Barbato, Juliana Brandão, Licida Vidal, Marília Scarabello, Nathalia Favaro menções honrosas Caró, , Daniel Caballero, Erica Sanches, Ginna Jorge, Higo José, Janaína Wagner, Luanah Cruz, Thiago Bueno Gomes, Vitor Pavan produção executiva Brecha Cultural – Jeff Barbato coordenação geral Aline Moreno montadores Hélio Iwasa, Luiz 83 fotografia Ana Helena Lima assistente de fotografia Mari Jacinto assessoria financeira Alternativa assessoria de imprensa Pevi56 acessibilidade Cris Kenne intérprete de libras Maurício Gut audiovisual – vídeo doc Felipe Perazzolo, Andrey Mendes direção de arte Jeff Barbato analistas de cultura Pinacoteca Geisa Tanganeli, Camila Rosa administração e infraestrutura Angélica Aparecida dos Santos, Clodoaldo Theodoro da Silva, Gilberto do Nascimento Santos, Juliano Mendonça, Ronaldo dos Santos Azevedo podcast semina rios Ana Helena Grimaldi, Julyana Tróya, Allan Yzumizawa, Estefania Gavina, Bispo Catador, Antônio Junior do Quilombo Cafundó, Jussara de Lima Carvalho agradecimentos Rafael Brito, Priscila Dias Ferreira, Cláudio Araujo e demais professores do Roteiro Educador; Alan Bossato Junior, Cadu Carvalho (Woods and Grooves), Loraine Miranda, Marcio Marianno, Marilene D. Barbato, Milton Barbato, Rute Mara e demais pessoas que colaboraram direta ou indiretamente.
APRESENTAÇÃO, por Jeff Barbato (Produção)
Entendemos por “sombra” uma projeção formada pela ausência parcial da luz, proporcionada pela existência de uma matéria frente a um emissor de luz. Uma sombra se projeta a partir do espaço conectado diretamente a um objeto, assumindo a sua forma ou sua “de-forma” dependendo do movimento dessas duas variáveis, luz-matéria. No taoísmo, a sombra é uma parte natural e equilibrada da existência, considerada uma dualidade inerente ao universo, onde a luz e a escuridão coexistem e se complementam mutuamente. Já por “zonas” entendemos um espaço, um fragmento, uma área que se delimita, natural ou artificialmente, sobre uma superfície, ela é a parte de um todo. Neste projeto, o conceito de zonas de sombra refere-se a áreas ou ecossistemas pouco conhecidos ou estudados, e, portanto, se têm uma compreensão limitada de suas características ecológicas e dos impactos das atividades humanas. Essas áreas podem ser zonas remotas, profundidades oceânicas, a perda da biodiversidade e de florestas pouco exploradas, áreas com pouca infraestrutura e outras regiões desconhecidas. Por sua vez, a perda da biodiversidade leva a desequilíbrios ecológicos e a problemas sociais irreparáveis, frente a isso, a cientista, escritora e ativista indiana Vandana Shiva, reafirma “a necessidade de analisar, reconhecer e admitir a importância e o valor produtivo da biodiversidade para o desenvolvimento sustentável, que não é predador e nem pode ser imediatista”. Me pergunto, se é possível que exista um desenvolvimento sustentável, sendo que a própria ideia de desenvolvimento dentro de uma sociedade capitalista presume o uso de recursos esgotáveis da natureza. Neste sentido, o termo “sustentável” torna-se apenas um adorno para justificar a exploração proposta pela classe dominante, gerando assim mais riquezas para poucos. O custo é caro e irreversível: muitas espécies de animais e plantas ainda desconhecidas pela ciência são ameaçadas de extinção antes mesmo de serem descobertas, diante disso, será possível pensar em futuros férteis? Com uma curadoria trina selecionada pelos curadores convidados Allan Yzumizawa, Horrana de Kássia Santoz e Jurandy Valença, a exposição zonas de sombra, trás uma atmosfera de incertezas e ambiguidades refletidas na complexidade das urgências climáticas e ecossociais. As obras dos artistas Aline Moreno, Elton Hipólito, Gina Dinucci, Gustavo Prata, Jeff Barbato, Juliana Brandão, Licida Vidal, Marília Scarabello e Nathalia Favaro apresentadas nesta exposição são zonas de sombra, ou seja, lugares ainda desconhecidos para você que lê. Uma floresta; um terreno desértico para o corpo que o percorre; uma ave rara, bem como, toda criatura que vive em um ecossistema pouco estudado ou mal compreendido é uma zona de sombra e estão sujeitos as lacunas em nosso conhecimento e entendimento de mundo. O projeto foi escrito e idealizado por intermédio de minha parceria com Aline Moreno, no intuito inicial de promover a produção artística de jovens artistas e principalmente debates frente à destruição ecológica, diagnósticos de futuro, a queima das memórias e assuntos que permeiam o campo da geologia, da paisagem, natureza e urgências climáticas. Contemplado pelo ProAc Expresso Direto de 2021, tem apoio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo e da Pinacoteca de São Bernardo do Campo. A exposição ocorreu entre 27 de maio e 11 de agosto de 2023, neste período, recebemos estudantes, educadores, artistas e público em geral do município de São Bernardo do Campo e região das mais diversas faixas etárias. Foram realizadas mais de nove visitas guiadas com o público mediadas pelos artistas participantes e foi produzido um documentário em vídeo com os diálogos que costuram este projeto. Aqui, deixo os meus mais sinceros agradecimentos primeiramente ao público tão especial que esteve conosco, a equipe da Pinacoteca de São Bernardo do Campo, aos meus colegas artistas que participaram desse projeto, aos curadores com suas constelações e pesquisas pessoais tão preciosas, a minha amiga e parceira de projeto Aline Moreno e por fim, toda a equipe de execução do projeto e aqueles que trabalharam direta ou indiretamente, sem a qual este não seria possível. zonas de sombra plantou uma semente, e como disse Walter Benjamin “em forma de semente, busca-se a sua sobrevida em uma outra terra”.
O RETO E O ORGÂNICO: DISCUSSÕES SOBRE A IDEOLOGIA DA LINHA, por Allan Yzumizawa
O pensamento ocidental, ao longo de sua história, estabeleceu um antagonismo entre os elementos da natureza e os da cultura. Diante de uma postura de dominação em relação à paisagem, o Homem ocidental impôs sua forma – moderna e reta – de modo a superar os movimentos caóticos e imprevisíveis do universo. Por outro lado, podemos observar como outros povos se relacionam com a paisagem. Muitas culturas indígenas, por exemplo, interagem com a paisagem de forma horizontal, dialogando com os fluxos da natureza: marés, temperatura, umidade, movimentos da flora e fauna, etc. Esse contraste entre formas retas da modernidade e as formas orgânicas da natureza reflete não apenas uma diferença estética, mas também uma diferença em sua densidade subjetiva. As formas retas tradicionais da cultura branca ocidental estão ligadas a uma mentalidade patriarcal e violenta, da qual impõe sua ordem e controle sobre o Outro. Essas linhas retas são expressões de poder e dominação, uma tentativa de subjugar e moldar a natureza de acordo com a sua vontade. Podemos observar sua presença, por exemplo, nas obras de Marília Scarabello, onde a compactação de terra em Uma porção de terra #2 (2023) representa um código de barras (referente ao carnê de IPTU) que indica o quanto optamos por explorar a terra em vez de cultivá-la, agindo como grandes extrativistas interessados exclusivamente no seu valor monetário. Temática também recorrente na série de Caró, intitulada Vende-se (2020). Nela, o artista se apropria de placas imobiliárias e realiza intervenções de desenhos de vegetação sobre elas.
A proposta é refletir sobre os espaços de especulação imobiliária, que por questões financeiras permanecem em ruínas por conta da ausência de interesse de compra. A situação, são argumentos e discussões de extrema importância, sobretudo no Brasil, no que tange os movimentos de reforma agrária e de ocupações da luta por moradia nos centros urbanos. As imagens apresentadas por Caró são contrastantes. Mostram o simbolismo da especulação capital do território contida nas placas de “aluga-se” ou “vende-se” nos imóveis e terrenos, com os “matos” que nascem nas frestas das ruínas abandonadas e nos espaços baldios. No trabalho, formação de-formação (2022) de Jeff Barbato, podemos relacionar o corpo como território, perspectiva presente em muitas culturas originárias. Nesses desenhos, observamos o processo de deformação de um embrião, e ao relacionar o corpo com o espaço, passamos a questionar a forma como sociedade objetifica, seleciona, controla espaços e corpos para que sejam aceitos em seus padrões pré definidos dentro de uma lógica patriarcal e produtivista. Este controle também é aparente na série Você poderia por favor não me encarar dessa forma (2021) de Nathalia Favaro. Nela, temos uma gravura em que representa um corte longitudinal do tronco de uma árvore e linhas ortogonais retas que indicam as formas que as madeiras terão para sua comercialização. Dessa forma, as linhas têm como estratégia garantir o máximo de produtividade e mais valia para sua comercialização. Fica evidente nesses trabalhos o modo como a linha reta traz uma lógica de dominação territorial, patriarcal e capitalista.
Por outro lado, as formas orgânicas presentes na natureza representam uma relação de alteridade e dialógica. Elas reconhecem a diversidade e a interconexão de todos os seres vivos, respeitando a autonomia e a liberdade de cada um. As linhas orgânicas não buscam impor uma ordem rígida, mas se adaptam harmonicamente ao ambiente, criando espaços fluidos e acolhedores. Em Intervalo (2019), de Nathalia Favaro, temos um vídeo que mostra a artista na floresta amazônica, tentando registrar as formas das árvores e plantas por meio de suas sombras realizadas por meio de raios de sol que adentram na mata e tocam uma folha em branco de formato A4. Favaro realiza uma espécie de anti-fotografia, ao não registrar permanentemente uma imagem pela luz, mas captando – mesmo que em instantes – as sombras dos seres vegetais da floresta. Embora o antagonismo possa funcionar de maneira resumida, as relações entre cultura e natureza são muito mais complexas e borradas. Em certa medida, existe uma zona ambígua em que ambos elementos se interseccionam.

Na série Uma inesgotável escavação (2023), de Jeff Barbato, o artista representa, através do aço oxidado, o desenho do Ribeirão dos Meninos e do Ribeirão dos Couros – ambos rios localizados na cidade de São Bernardo e que estão completamente soterrados pelo concreto da cidade. Em Terra Rasgada (2022-23), o mesmo material e técnica são utilizados, mas a linha deixa de representar o rio e passa a designar as linhas das ferrovias sorocabanas. Dessa forma, Jeff Barbato coloca lado a lado o rio e a estrada como duas importantes tecnologias da humanidade: natureza e cultura sendo localizadas de maneira horizontal. Algo semelhante pode ser constatado nas produções de Ginna Jorge. Em Corpobioma (2019-20) a artista apresenta uma sequência de quatro fotografias em que visualizamos um corpo vermelho deitado compondo junto com rochas. Por mais que o vermelho faça o corpo saltar para frente do nosso olhar, existe nesta composição – além da planaridade imagética – uma horizontalidade entre figura humana e “paisagem”, como se a forma humana subjetivasse a rocha e vice-versa.
As possibilidades de reflexões adquirem mais camadas ao percorrer por outro trabalho da mesma artista intitulado Artefato para ouvir o murmúrio das pedras: Murmúrios do quartzo rosa (2019-20). Trata-se de um áudio realizado a partir de captação das texturas de um quartzo rosa, por meio de um piezoelétrico e posteriormente, sintetizadas e editadas digitalmente. A proposta é constituir diálogos e escutas não-humanas de minerais e discutir as formas como podemos desconstruir as perspectivas antropocêntricas da nossa sociedade patriarcal. Ginna Jorge consegue propor outras perspectivas de subjetividades não hegemônicas com a natureza, e além disso, insere a tecnologia como aliada para realização de coalizões entre seres. Natureza, cultura e tecnologia, são substantivos, que aqui não fazem mais sentido: intersecção entre linhas orgânicas e retas. Se os trabalhos da artista indicam possibilidades de diálogos com seres não-humanos, mais especificamente com os minerais, Higo José traz uma série de produções de bordado, em que a linha orgânica representa figuras associadas às pinturas rupestres. A ausência de perspectiva, pontua o plano bidimensional ausente de hierarquias (em cima, embaixo, primeiro, segundo, etc.), dessa forma, o que temos são povoamentos de ícones bordados que podem representar tanto animais quanto formas humanas e/ou vegetais. Em Onça de Chiribiquete (2022), temos como figura central da imagem, a onça rodeada por outros animais. Tanto a composição, como a forma de representação atribui para o animal, uma subjetividade da qual podemos relacionar com as noções de perspectivismo elaboradas pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Nela, o antropólogo argumenta a horizontalidade entre seres a partir da perspectiva indígena, de modo que todo animal, carrega uma “humanidade”.
As linhas orgânicas, são contraprodutivas, não são econômicas justamente por variarem a trajetória entre dois pontos. Elas são deslizantes e não confiáveis por sua imprevisibilidade. Porém, ela possui uma energia negativa, fagocitante e acolhedora. Trata-se de movimento de alteridade, onde se preocupa menos em direcionar e atuar, do que ouvir e receber. Sua ação deriva sempre de uma resposta a outra, de modo que se torna um eterno diálogo. Dessa forma, as linhas orgânicas discordam da monocultura, pois dentro de sua perspectiva, a diversidade é um caminho que amplifica as possibilidades de diálogos, e de potência criativa. A filósofa e ativista indiana, Vandana Shiva, discorre sobre a metáfora da monocultura não se tratar apenas de um fenômeno agrícola, mas se expande para as nossas relações pessoais, uma “monocultura da mente”. Se quisermos permanecer de maneira saudável neste universo, é preciso ouvir e obter colaborações com outros seres, abdicar da monocultura e aceitar a diversidade – que possamos permear o nosso cotidiano e perspectiva com um pouco mais de linhas orgânicas.
O FIM, É FÉRTIL, por Horrana de Kássia Santoz
Antropoceno designa uma nova era geológica, período no qual a atividade humana teve um impacto significativo nos ecossistemas e processos geomorfológicos da Terra. Tomando partido desse estado contínuo de transformação em que a experiência humana está intrinsecamente implicada é urgente agir e propor outras estratégias de sobrevida, e a arte também se faz necessária, para nutrir questionamentos sobre futuros possíveis, assim como propõe a curadoria da exposição zonas de sombra. O diálogo estabelecido entre as obras que compõem a exposição, realizada na Pinacoteca Municipal de São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, entre os meses de maio a agosto de 2023, se aproxima ao conceito geológico a que se refere o título, ao mesmo tempo que reflete uma nova perspectiva para o termo. Dessa maneira, selecionar, organizar e fomentar um recorte para esse partido curatorial tornou-se um exercício de afinidades, deslocamentos, escuta e principalmente de coletividade. Diante de um número expressivo de inscritos também foi necessário observar os desafios que a proposta curatorial, tal como a anunciada, atrairia e até antever possíveis equívocos, como um certo encolhimento em torno de temas como “ecologia” e “natureza”. Os trabalhos selecionados guardam semelhanças em seus discursos, criam desafios estimulantes para a instituição e não apenas por incorporar um viés temporal e antropológico, mas por propagarem de forma distinta novos paradigmas sobre o que vivemos hoje. Também se tornou urgente para o júri atentar-se à diversidade de trabalhos e de artistas que participaram do processo de seleção de zonas de sombra. Assim, atribui-se o prêmio de Menção Honrosa a artistas que, pela distinção e relevância de propostas, se fundem na narrativa da exposição. Em tempo, coube a cada curador celebrar a premiação das três artistas, que tanto fortalece a prática educativa e curatorial como catalisa os princípios desse importante conjunto artístico. Outro ponto crucial e exitoso para concretização da exposição, sem dúvidas, é a Pinacoteca Municipal de São Bernardo do Campo. Fundada em 1975, mas desde 2008 instalada no edifício atual, na Rua Kara, a Pinacoteca está integrada a um parque botânico e é o maior equipamento museológico da região do ABCD paulista. Um espaço expositivo de arquitetura ampla e vigorosa que potencializou a exposição e permanece como espaço distinto para arte brasileira. Além de receber exposições temporárias como zonas de sombra, a Pinacoteca Municipal possui um precioso cervo com obras de artistas contemporâneos, nacionais e internacionais, expostas no piso térreo e no Jardim de Esculturas. A Biblioteca de Arte Ilva Aceto Maranesi com seu acervo multimídia completa a função artística e formativa do espaço. Nesse contexto rico de diálogos e de escritas, contando com a participação dos artistas; das equipes da Pinacoteca de São Bernardo do Campo; dos organizadores e do corpo curatorial é que a exposição encontrou seu argumento mais contundente; somos casa, corpo e paisagem.
“Nessa altura conviria que não esquecêssemos que estamos na paisagem como a paisagem está em nós. Foi a partir dela que o homem, todos os homens de todos os tempos, tomou medida de si; percebeu-se no interior de algo maior e por isso mesmo aterrorizante.”
CASA, CORPO E PAISAGEM
Se a paisagem, enquanto definição, é fruto da construção humana, Licida Vidal subverte essa ordem com Terral (2020 – 21), obra inaugural da exposição. Os tecidos retorcidos e suspensos são preenchidos por um composto de terra, sementes nativas da América do Sul e água. Nessa instalação, cada bolsa guarda a possibilidade de germinação. Contando que o trabalho segue em processo, a artista – que também é cientista social – convidava as/os visitantes a acompanhar a transformação que estava prevista para os meses de exposição. Para Vidal, o ato de cultivar expande a vida e o sentido da mutualidade, seja entre o tempo e a matéria orgânica, ou entre quem cultiva e o imponderável.

Os azulejos que habitualmente compõem o acabamento interno e privado de uma casa passam de revestimento a totens nas obras Torre do silêncio n.1 (2023) e Torre do silêncio n.2 (2023) de Juliana Brandão. Artista multidisciplinar, Brandão inventa pseudo armadilhas, esculturas sonoras ativadas conforme a aproximação da/do/de visitante. No primeiro totem pode-se ouvir o bufar de uma baleia, já no segundo ouve-se o canto de um pássaro, acentuando assim os contrastes entre o que há dentro e no entorno do espaço expositivo, como também instiga a curiosidade entre o que é natural e o que é artificial, o que dominamos e o que é livre. O modo como a relação entre casa e paisagem se esgarça na obra de Brandão e Vidal, também revela a peleja entre a memória e o tempo na vídeo performance Experimento 5: “Me traziam a lembrança daqui, de…” (2022) da artista Luanah Cruz, apresentado para seleção da mostra premiada pela Menção Honrosa. Nas palavras da artista, “Ao revelar ciclos de renascimento e fortalecimento de um corpo, que é a própria travessia, as forças da natureza, seus existentes e divindades, torna-se presentificação e atualização da história de seu povo, a obra anuncia a retomada de sua liberdade.” Cruz que transita entre as artes do corpo e o audiovisual, busca sempre materializar uma presença que flui, que é protagonista de vidas e memórias ancestrais.
É “NECESSIDADE OU SOMENTE PELO PRAZER, PELO PRAZER”?
Seja em “Geração Coca-Cola” de Renato Russo como nos versos de “Consumo” de Ricon Sapiência, a música sempre foi espaço de crítica ao modelo liberal e da cultura de consumo que violenta a sociedade, e as artes, em seus diversos meios de expressão, por consequência, também está implicada nesse jogo histórico-mercadológico. O artista Gustavo Prata manipula resíduos industriais do seu próprio consumo, para construir obras monumentais que confrontam o olhar para o cotidiano diante do rastro que a existência humana causa. Prata é um típico residente de uma metrópole, se interessa em observar a rotina e os hábitos mais vulgares e disso extrai a matéria-prima para travar relações entre o que é consumo e quem é consumido. Com composições que escapam de uma formatação pacífica, na obra Amálgama (2022), Prata cria um sumidouro, um organismo-verbal que hipnotiza o espectador, ou quando trata de cor e forma, como na obra 8040 (2021), que verticaliza uma coleção de embalagens de maços de cigarro e, ambiguamente, confere um novo status para o cotidiano. Na obra Ontem (2022) a partir de recortes de manchetes de jornal do período da pandemia de COVID-19, o artista cria um mapa que alude ao traçado da antiga Estrada Real, via terrestre usada pela Coroa Portuguesa desde o século XVIII para o escoamento de ouro e pedras preciosas entre Paraty (RJ) e Ouro Preto (MG). O artista Thiago Bueno Gomes diz que a série Glitch Mercadológico (2021-2022) “é uma declaração de acúmulos: o acúmulo de incertezas e confusões, angústias, vidas perdidas, o acúmulo do consumo para a vida seguir acontecendo; o acúmulo dos resíduos gerados e o seu impacto no planeta”. Inscrita na seleção e contemplada com a Menção Honrosa, a obra é um políptico composto por doze colagens e remete a um painel vídeo wall, contudo Glitch Mercadológico se distingue quanto a personalidade e individualidade impressa através dos recortes de etiquetas de pacotes. Gomes toma emprestado o termo inglês glitch, que aponta para erro da imagem eletrônica e reencena, por sobreposições cromáticas e ruidosas, uma obra que produz uma “poluição visual” fruto do presente. A terceira artista a receber a Menção Honrosa é Janaína Wagner, que lança mão de diversas linguagens artísticas e fontes de pesquisa para compor obras que buscam revelar as relações de domínio que o homem tenta estabelecer no mundo. Em um dos seus vídeos, Cães Marinheiros (2020), Wagner conta a história da cidade de Airão, no Amazonas. Em um roteiro insólito, o vídeo mostra a paisagem de uma antiga cidade, fundada por missionários portugueses no final do século XVII e que serviu para produção de borracha na região. Nas palavras de Wagner “Após um rápido e insustentável crescimento econômico, seguido pelo início do Ciclo da Borracha, a cidade faliu.” Entre fato e ficção, o vídeo compõe uma decupagem entre texto e as imagens de uma cidade, tomada pela vegetação e pelo silêncio. Ao mostrar uma cidade que deixou de existir, Wagner reforça uma nova forma de existência para este lugar.
Ainda não há consenso entre cientistas e teóricos das ciências naturais sobre o início dessa nova era. Fala-se que o início do Antropoceno se deu com a Revolução Industrial, contudo, é impossível ignorar os processos coloniais e as viagens ultramarinas do século XV, como antecedentes fundamentais da constituição deste cenário geopolítico, de violências e usurpação cultural. Também é preciso reconhecer o estabelecimento do sistema capitalista e o contexto das guerras do século XX, como momentos cruciais para desenvolvimento da cultura do consumo, ou de uma “nova forma de vida forjada pelo consumo”2. Participamos com certa passividade do avanço das tecnologias de produção, da devastação de biomas, do aumento da massa populacional, do crescimento e da gentrificação desordenada das cidades, da violação dos direitos de povos originários, afrodiaspóricos e des pessoas dissidentes de gênero. Ainda assim, zonas de sombra não impõe uma sentença, um juízo final, estéril de existências e coletividades, posto que acena para capacidade humana de conceber um devir e tramar as mais diversas mutações, pois, neste caso e nesta exposição, o fim é fértil.
O CHIAROSCURO DAS ZONAS DE SOMBRA, por Jurandy Valença
Michel Foucault, no texto “Outros Espaços, Heterotopia”, elabora o conceito de heterotopia para mostrar que o espaço do outro foi esquecido pela cultura ocidental. Para ele, o espaço como uma forma de relação de posições é onde a vida é comandada por espaços sacralizados. As obras de Aline Moreno, Elton Hipólito e Gina Dinucci aqui exibidas abordam questões afetivas e pessoais, artísticas e políticas que trazem à luz a zona de sombras que vai além daquela – geologicamente falando – se manifesta como um “obstáculo”. Me refiro também aqui às sombras luminosas do chiaroscuro, palavra italiana que designa ao mesmo tempo luz e sombra, o claro e o escuro existindo ao mesmo tempo. Cada uma ocupando o seu lugar. Trazendo para o espaço institucional a sacralidade que a arte abriga.
“Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama” Michel Foucault
A SOMBRA ILUMINADA
Aline age como uma topóloga que vai além da superfície dos lugares. Ela discute a tradição/tradução e representação da natureza e da paisagem por meio de operações visuais que remetem à cartografia. Mas não aquela que entendemos como a representação geométrica plana, simplificada e convencional da superfície terrestre ou de parte dela. Suas obras exploram aspectos híbridos na fronteira entre o que é “fotográfico” e o que é “pictórico”. Os trabalhos exibidos aqui fazem parte de duas séries diferentes e lidam com a natureza enquanto conceito e idealização. Suas pinturas e colagens partem de imagens de satélite de montanhas que são manipuladas pela artista e transformadas em obras de diferentes escalas. São lugares [re]criados a partir de pesquisas na internet e apropriações de imagens, criando novas paisagens. Suas obras constituem dispositivos mnemônicos que se relacionam com a nossa memória. O que vemos são pedaços de uma cartografia afetiva na qual o espaço – o lugar – não é algo que se impõe, ao contrário, se constrói a partir da experiência humana e, principalmente, do nosso olhar. Elton Hipólito nos apresenta em sua série “Processo de Tombamento” o quanto a arte pode dialogar com a política, tornando-se, ela própria um ato, um manifesto. Os trabalhos expostos são um recorte de patrimônios nacionais que, como ele mesmo diz, “se apresentam em situação de risco ou já arruinados”. Suas pinturas escoradas com toras de eucalipto já trazem em si um elemento estrutural que agrega mais poder às obras. Afinal, ele é a árvore mais plantada no Brasil e é responsável por mais de 90% de toda a madeira utilizada no país para os mais diversos fins. E ainda traz outros sentidos para a palavra “tombamento”: são ações do poder público para preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico e ambiental? Ou também o ato em si de tombar, de cair, de “dar um tombo”, de enganar, passar a perna, tirar vantagem ilícita?

Com seus trabalhos aqui apresentados, ele cria uma operação mental e visual que se ancora entre a arquitetura e a pintura, expandindo os limites da composição pictórica e iluminando zonas de sombras nessa fronteira de linguagens, provocando uma fricção dialógica. Gina Dinucci cria obras que reúnem reflexões sobre memória, relações humanas, dinâmicas urbanas e situações políticas. Em sua pesquisa visual ela recorre à apropriação de imagens e objetos de seu cotidiano, explorando dimensões e simbologias de ordem pessoal, social, histórica e formal. Em seus trabalhos em diferentes técnicas e suportes, a artista lida com reflexões sobre como lidamos com o ouro de maneira muitas vezes banal, consumindo e desejando um símbolo de violências e tragédias humanas e ambientais. Ele, que é considerado o mais perfeito e o mais precioso dos metais, que simboliza o conhecimento, a imortalidade, nobreza e, realeza, para algumas religiões têm um caráter divino. Não é à toa que as imagens de Buda são douradas para representar a iluminação e a perfeição absoluta, assim como o fundo de muitas pinturas ou iluminuras bizantinas também são douradas, como um reflexo da luz celeste. Gina, em suas obras, torna reluzente aos olhos do espectador, um outro ouro, aquele que brilha “ofuscando toda a sua trágica história alicerçada na escravidão, fome, cobiça, desigualdade e violências de todos os tipos”. Eles transitam por vários suportes e linguagens para dar forma às suas inquietações, e nos provocam a pensar sobre o presente e o nosso devir. De certa maneira, clareiam uma penumbra que coloca em jogo uma dimensão política trazendo para um espaço público formas e composições que destoam e provocam dissensos ao mesmo tempo que inventam novos e outros mundos. Nunca podemos esquecer, lembrando de Deleuze, que a vida está sempre por um fio e “é preciso conseguir dobrar a linha, para constituir uma zona vivível onde seja possível alojar-se, enfrentar, apoiar-se, respirar – em suma, pensar. Curvar a linha para conseguir viver sobre ela, com ela: questão de vida ou morte”.
OS SUPLENTES
Mas, além do meu núcleo curatorial comentado acima, não posso deixar de citar os três artistas que escolhi como “suplentes”; uma palavra que designa uma espécie de “lista de espera”, uma segunda ordem de classificação, mas que aqui não deixa de dignificar sua importância e aderência à mostra. Ao contrário, dialogam muito com suas respectivas pesquisas visuais em relação aos artistas selecionados no projeto. Aliás, a origem da palavra vem do latim suplente, particípio presente de supplere, o que completa, supri, preenche. Daniel Caballero literalmente se embrenha em seu material de pesquisa visual, social e ambiental. No seu projeto – uma instalação composta por capins nativos da nossa flora, entulhos diversos, fios, lâmpadas, livros, um megafone, pedras e tijolos – ele se insere como protagonista reforçando a ideia que o sujeito, o artista, também é a obra. E reverbera para mim Joseph Beuys quando afirmava que “cada homem, um artista”; com isso ele não quis dizer que seria necessário transformar uma pessoa em um escultor, pintor, ator; não, para ele a sentença resgata o sentido artístico que nossa vida pode adquirir. Erica Sanches propõe uma instalação quase ritualística, uma alquimia na qual suas esculturas e objetos abordam questões relacionadas à transformação, ao tempo e à finitude. Cerâmicas, cinzas, ferros, fios de cobre, madeira, óxidos, sulfatos e terra “falam”, por intermédio de texturas e volumes. São rastros, vestígios que têm o fogo como um elemento central para [re]configurar não só a obra em si, mas também o nosso habitat, o nosso local de [sobre]vivência. Vitor Pavan, que tem a fotografia como eixo de sua produção artística, tece considerações sobre as conexões entre nós – humanos – e o meio ambiente criando narrativas visuais nas quais a paisagem se apresenta expandida, desnivelada, quase artificial na sua realidade [in]comum. Ele desloca o ponto de vista do observador em relação ao espaço [re]criando uma zona na qual a sombra é revelada em um simulacro. Ele nos apresenta um novo horizonte de acontecimentos.
A PARTILHA, O QUERER E O PODER
Lembro de um texto que li da Elizabeth Araújo Lima, professora, pesquisadora e livre-docente da Faculdade de Medicina da USP. Nele ela comenta sobre o conceito da “partilha do sensível”, de Jacques Rancière, “partilha que, estando no cerne das relações entre estética e política, permite ver quem toma parte no mundo comum em função daquilo que faz e define nele formas de visibilidade, lugares, tempos e tipos de atividades […] Explorando arte e corpo em um campo expandido…”. Mais uma vez retomando Deleuze, a arte pode ser muita coisa, mas “nunca é uma operação desinteressada”. Ela “não cura, não acalma, não sublima, não compensa, não ‘suspende’ o desejo, o instinto e a vontade. A arte, ao contrário, é ‘estimulante da vontade de poder’, ‘excitante do querer’”.
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